Urariano Mota, Direto da Redação
“Um texto de
Contardo Calligaris na Folha me dá inspiração hoje para esta coluna. O artigo
de Calligaris me chamou a atenção desde o título, Mulheres infelizes. Mas não
só, porque depois de mencionar os romances Anna Karenina, Madame Bovary e
Therese D., Contardo Calligaris escreve que “a modernidade poderia (ou
deveria) começar, exemplarmente, com essas três histórias de insatisfação
feminina, ou seja, com a descoberta de que as mulheres têm sonhos e devaneios
que vão além de um marido devoto, de uma família e de uma vida ao abrigo da
necessidade --em outras palavras, com a descoberta de que existe um desejo
feminino”.
E foram as frases entre
aspas acima que me moveram para esta coluna. Não sei se Calligaris sabe, mas no
Brasil a infelicidade das mulheres bem gostaria de possuir maridos devotos,
famílias e vidas sem necessidades básicas. Se assim fossem infelizes, 90% das
brasileiras até poderiam dizer que sentiam um pouquinho do gosto da felicidade.
É sério. Quando a gente relaciona a infelicidade feminina nos romances
clássicos às mulheres brasileiras, a inadequação é a mesma do pregador
franciscano em Canudos, no instante em que recomendava jejum de farinha e
bacalhau aos sertanejos. O religioso ganhou gargalhadas, aos gritos de que
“assim já é fartura”.
Queremos dizer, a
infelicidade da mulher nos romances apontados por Calligaris é, ela própria,
uma infelicidade ainda inalcançável para a maioria das brasileiras. E se falo
mais claro, digo: o nosso inferno é maior, buracos mais embaixo. Pois se não
sabem, saibam que também há uma radicalização no infernizar a infelicidade,
como um descer vertical no aviltamento, numa injustiça que aprisiona, condena e
mata. Escreve Calligaris: “Não é por acaso, aliás, que, nos três romances, a
maternidade não faz a felicidade das mães. A descoberta do desejo feminino
acompanha a descoberta da inadequação e da insuficiência dos homens, como
maridos e também como filhos”. Mas em que mundo ele vive? A infelicidade
das mães no Brasil começa já na falta de um lugar onde com segurança elas deem
à luz. Enquanto escrevo as maternidades populares estão repletas de mulheres
nos corredores, no chão, agonizando. Ah, Bovary.
As traduções das mulheres
infelizes do mundo clássico para o Brasil atendem pelo nome de Maria. Em lugar
de nobres e burguesas, esse nome é dado para melhor corpo e formas, que se
machucam nas pessoas das pobres, bravas e violentadas. Agora mesmo é possível
sentir o cheiro do velho tempo que sobrevive na modernidade do Brasil. O cheiro
vem de flores sem perfume, apenas com um acento de náusea, porque cobrem
cadáveres. Exagero? É só ter olhos de ver, coração de sentir e pensamento de
não negar. Abram as folhas, percorram a web, escrevam na busca mulheres
assassinadas. Entre os 2.800.000 resultados, a maioria será de crimes “de
amor”. Na verdade, mulheres assassinadas por um amor que jamais receberam. E que amam ainda assim.
Na verdade, as mulheres sem
amor amam, mas em um afeto de compensação. Agora digo por que o texto de Calligaris
me deu o mote para a coluna de hoje. O seu título, Mulheres infelizes, me
trouxe à lembrança um trecho do meu próximo romance, “O filho renegado de
Deus”. Dele copio o parágrafo a seguir:
Existe no coração das
pessoas uma vontade irrefreável de amar. Ama-se um gato, ama-se um cachorro, um
papagaio, uma flor que ninguém quer ou vê. Talvez esse amor que deriva e vaga
por objetos e coisas que não respondem, ou respondem abaixo da fome de amar,
talvez sejam sintomas do afeto que procura no mundo um individuo que lhe
responda. Ou, quem sabe, o amor elástico, amplo e plástico onde tudo cabe. Em
lugar de um pansexualismo, como o vê uma absurda redução, o amor às coisas é
antes um panafeto. O carinho e o cuidado com que se toca uma mercadoria, um
carro, um revólver, uma faca ou uma caneta, em lugar de um desvio, de um puro
desvio daquele coração que se guarda para um amor maior, talvez seja o coração
mudado para um afeto camaleão, que se veste da pele do lodo do esgoto ao verde
da mata. Camaleão feio, mas camaleão. Iguana de luxo, iguana-afeto que, em vez
de saltar os obstáculos à sua natureza, faz da adaptação ao obstáculo a sua
natureza.
Quero dizer, enfim: a modernidade poderia e
deveria começar no Brasil com a descoberta de que mulheres são pessoas plenas,
loucas por um dia terem o drama de Madame Bovary. E corrijo: no Brasil? Melhor
seria dizer, nos Brasis de todos os lugares onde houver a redução de gente a
coisa, ou a corpo, puro corpo. Corpos desejados de mulheres, e quando fora de
utilidade, destruídos."
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