Tiro ao alvo


Por Matê da Luz, GGN -

A pequena responde à pergunta mesmo quando não proferida. Adora contar que vai ser bióloga marinha, estilista, escritora, desenhista, astronauta, policial e algumas outras coisas que variam conforme as condições de temperatura e pressão – o chamado mood do dia. Fala, ainda, sobre os planos de sair de casa aos 19 ou 23 anos, ter um ou dois ou três filhos, andar de moto “mesmo que você me proíba, mãe” e sobre morar na casa da tia Fê, em Bath. São tantos planos e sonhos que ela diz que vai escrever pra não esquecer do que quer. E eu fico feliz. Muito, muito feliz.

Há cinco anos, completados hoje, um amigo de infância – infância mesmo, da escola, sabe? – pulou de uma janela bem alta, tão alta quando sua angústia. Desde aquela época, este amigo não cabia nele mesmo: era uma pessoa que sempre buscou entender onde estava, o que queria, o que deveria fazer e por quem fazer. Estive ao lado dele em alguns momentos de imensa indecisão, e dado o final desta história, não consigo acreditar que quando falava que ele haveria de encontrar um projeto de vida, algo que o movesse nesta vida, ele tenha me escutado. Sei que algumas poucas pessoas fizeram o mesmo, como um outro amigo dele, um indivíduo interessantíssimo que conheci, infelizmente, quando fomos dar suporte às pouquíssimas pessoas que estiveram naquele cemitério debaixo de um sol extremamente desnecessário. Infelizmente porque tenho certeza que esse amigo, assim como eu, estava muito empenhado em apoiar nosso amigo a encontrar um caminho, qualquer que fosse, que não o da janela.

Assustei minha filha ao contar o que houve, os motivos que levam um menino de 30 anos a simplesmente não aguentar mais e ser vencido pela maior do mundo – a dor do nada. Chorei tanto, tão confusa e descriteriosamente que não consegui ter filtro pra me controlar e falar pra ela que ficaria tudo bem. Foi bom, porque hoje ela entende que as coisas podem mudar em um piscar de olhos: o que estava divertindo pode se tornar facilmente aquilo que frustra forte e profundamente. Tão profundamente que nenhum tipo de amor consegue alcançar. Ela hoje entende que a vida é cheia de obstáculos e que a gente precisa estar com as pernas boas e a cabeça funcionando pra entender qual escolha estamos fazendo diante daquele momento. Ela me abraça com tanta força que entendo que filha pode, sim, cuidar da mãe quando a situação pede. Ou implora, neste caso.

Este post é definitivamente triste, e o escrevo com as mãos trêmulas, os olhos abarrotados de lágrimas e o coração tão apertado que não parece ser o meu. Mas, refletindo sobre as tantas escolhas da filha, que serão colocadas em prática dentro de alguns meses com a chegada do fim do colegial, as opções que meus chegados colocam à sua frente quando pensam que “minha vida já era” e aos meu próprios caminhos traçados, retraçados, descartados e reformulados, chego à conclusão de que somos privilegiados. Fomos orientados a ter um plano, ou dois, ou três, ou quantos forem preciso pra seguirmos, mesmo que machuque um tanto, mesmo que a gente saiba que está indo pela trilha errada, mesmo que nunca dê pra ver o que está lá na frente esperando por nós.

Querido amigo, sinto muito por não ter conseguido expressar que qualquer caminho que você escolhesse seria brilhante, porque assim eram seus olhos. Sinto muito por não ter estado fisicamente mais perto quando você me ligava às três ou quatro da manhã. Lembro da gente sentado no banco do Galileu, ele com a cabeça deitada no meu colo, prontos pra perder a aula depois do intervalo só pra conversar nos meus intermináveis monólogos de “com isso não se brinca”. Sinto muito por não ter perdido mais aulas pra isso. Sinto muito por tanta coisa.

Só não sinto por ter sido a pessoa mais chata do mundo ao te alertar que, sem um alvo pra mirar, por mais distante que estivesse, a vida ficaria tão, mas tão vazia que quase ninguém consegue lidar com isso.

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